sábado, 3 de novembro de 2012

Lyssa

Shrapnel (por Marek)


Tudo aconteceu muito rápido. Primeiro o alerta de que o vírus havia se espalhado por toda a nave. Depois a correria, e as tentativas de escapar de um destino que já estava selado. E por fim a conversão.

Lyssa pensava nisto tudo enquanto, ofegante, mas procurando controlar a respiração para que não fosse ouvida, esperava que uma janela de oportunidade se abrisse para sair de seu esconderijo nas sombras. Haviam cinco no corredor que a separava do escritório do almirante. Enquanto observava atentamente a movimentação de seus ex-companheiros e amigos, procurava se lembrar das explicações da equipe científica.

- O mais importante é que vocês saibam que o vírus só é ativado por uma frequência sonora específica, que o sistema de segurança da nave está programado para bloquear caso detecte qualquer tentativa de emiti-la.

"Sim, Dr. Schwartz, mas você não contou com a hipótese do inimigo invadir nosso sistema e fazer com que ele se voltasse contra nós, emitindo a tal frequência...", pensou Lyssa enquanto via que algo chamou a atenção dos cinco homens de armaduras que ainda andavam maquinalmente pelo corredor que precisava percorrer. Segurou com mais firmeza sua arma, e seus músculos ficaram mais tensos dentro de seu traje de combate. Tinha que posicionar-se para correr a qualquer momento.

- Mas, doutor, eu não entendo porque o vírus tem que ser estudado aqui dentro! Qualquer problema que tiverem com os equipamentos de quarentena e a tripulação inteira pode ser infectada em questão de horas!

- Confiamos no sistema de segurança, Coronel Richards. É um firewall de dez níveis, e a melhor e mais complexa encriptação já desenvolvida na galáxia. Impossível de ser decifrada.

"Não para os nossos inimigos, Dr. Schwartz..." Os homens já estavam quase no final do corredor. A janela estava se abrindo. Lyssa ergueu-se, arma junto ao peito, corpo incrivelmente tenso. Assim que passaram da porta do escritório do almirante ela começou a correr.

Calculou uns quinze metros enquanto corria. Contava com a possibilidade de que a infecção afetava de alguma forma o aparelho auditivo daqueles que já estavam sob o controle telepático da criatura. Mas pouco antes de chegar ao escritório, Lyssa descobriu que ainda continuavam ouvindo muito bem. Os dois últimos do grupo viraram em sua direção, e começaram a apontar suas armas pra ela. Lyssa foi mais rápida e acertou-os bem no peito. Sabia que isto serviria apenas para retardá-los, pois suas armaduras de combate eram à prova de rajadas de plasma. Mas ganhou tempo o suficiente para entrar no aposento. Assim que o fez trancou a porta inserindo a senha de travamento no teclado. Não resistiria muito tempo, pois, infelizmente, ao contrário das armaduras de seus inimigos, a porta não resistiria aos tiros de suas armas.

Olhou freneticamente ao redor do escritório em busca do que precisava para seguir em frente. Era um escritório à moda antiga, com móveis de madeira, e livros de papel, impressos na gráfica particular do almirante. "Tão antiquado," se permitiu pensar enquanto continuava procurando. Na parede oposta à escrivaninha encontrou. Estava sobre aquecedor disfarçado de lareira, um truque simples feito com projeções holográficas que saudosistas usavam para se sentirem mais próximos de seus lares planetários.

- É uma das reproduções mais fiéis de uma katana do período Tokugawa. - dizia o Almirante Dämmer a Lyssa - A única diferença é que a lâmina foi afiada por um amolador quântico. Corta qualquer material feito manteiga, pois seu fio desfaz as ligações subatômicas.
- Mas por que você pediu pra afiá-la assim, papai, se ela fica o tempo todo dentre deste campo de êxtase?
- Porque nunca se sabe quando precisaremos das armas do passado, minha filha. Pode ser que um dia toda a nossa tecnologia nos deixe na mão.

"Sim, papai, você estava certo..." Lyssa pegou com reverência e com muito cuidado a espada. "Qualquer descuido e eu posso me dar mal também..."

Em seguida vieram os tiros. A porta já estava cedendo. Encaixou sua arma no coldre da armadura, empunhou a espada com as duas mãos, em posição de batalha. "Vamos se eu ainda me lembro das suas aulas de kendo, papai." A porta de metal desabou no chão do escritório. Sentiu o tremor do baque percorrer todo o seu corpo. Dois homens entraram.

Lyssa correu na direção deles. Desviou os disparados com o escudo do antebraço esquerdo. Não foi o suficiente pra impedir que a viseira de seu capacete fosse destruída quando a rajada passou de raspão por ele. Mas isto não a impediu de decapitar o primeiro deles. "Como manteiga..." Sem hesitar fluiu a lâmina até o peito do segundo.

- Descansem em paz, meus amigos.

Quando botou a ponta do pé pra fora da soleira da porta, sentiu uma rajada passar de raspão por sua testa. Voltou logo para dentro. "Os outros três já estão posicionados..." Trocou a espada para a mão esquerda, e agarrou sua arma com a direita. Esticou-a pra fora do escritório, e disparou na direção de onde veio o tiro. Contou dez rajadas a esmo, o suficiente para atordoá-los, e saiu com tudo na direção deles.

Desarmou o primeiro com um tiro certeiro na mão, e rasgou-o de cima a baixo com a katana. O segundo acertou Lyssa no ombro esquerdo. A armadura deu conta do tranco, mas a espada voou de sua mão. Saiu rodopiando. Lyssa se jogou pra trás, caindo de costas, e disparando contra o capacete de Ryan. Havia jogado poker com ele na noite anterior. Se divertiram muito. Ela quase o levou pra cama depois de algumas bebidas, mas já estava cansada demais pra fazer mais do que dar-lhe um beijo de boa noite. O capacete dele era feito de fibra reforçada, ao contrário do que ela usava. "Malditos soldados de elite e suas armaduras ultra-resistentes!" Chovia disparos em sua direção, mas a maioria acertou o chão. Pelo menos ainda estava atordoado depois dos tiros que recebeu dela. Foi o bastante para ela pegar a espada, correr a lâmina até a virilha de seu atacante, e dividi-lo em dois de baixo pra cima. Restava um.

Um dos disparos chamuscou a ponta de seu cabelo. O cheiro de queimado a irritou. Disparou contra os joelhos dele. Dez rajadas alternadas em ambos. Suas pernas cederam. Caiu de quatro no chão. Mas a arma continuava ao alcance de suas mãos.

- Chega de brincar, Scott!

Girou o cabo da katana no punho direito, segurou-a feito uma lança, e a arremessou. Atingiu a testa de Scott, que caiu morto para frente.

- Na eventualidade de toda a tripulação ser infectada, Lyssa, você é a única que tem chances de sobreviver. Você sabe por quê.
- Sim, papai. De repente meu problema de nascença virou minha maior vantagem.
- Sempre tive muito orgulho de você, filha. Durante todos estes meses ninguém desconfiou dele. Sua leitura labial é algo que não cansa de me impressionar.
- Também ajudou muito o traje amplificador de vibrações ambientes que seus cientistas criaram pra mim, papai. Caso contrário, logo nosso segredinho seria descoberto.
- Eles estão muito próximos de nos derrotar, Lyssa. Várias de nossas naves foram infectadas pelo vírus disseminado por aquela coisa. Todos se tornaram...
- Eu sei, pai. Todos agora fazem parte daquela criatura horrível.
- Uma entidade coletiva. É o que nossos cientistas dizem... Quem imaginaria que uma forma de vida como aquela existia no universo... Algo capaz de controle mental remoto, mesmo a anos-luz de distância.
- Não adianta ficar pensando nisto agora, pai. Nossa equipe científica já conseguiu isolar o vírus. É só uma questão de tempo até desenvolverem uma vacina.
- Não é tão simples assim, Lyssa. É um microorganismo muito ardiloso aquele, segundo me disseram. Qualquer descuido e ele pode infectar um deles, e isto será o suficiente para que ele se espalhe caso não consigam isolar o hospedeiro a tempo.
- O Dr. Schwartz me pareceu um homem muito cuidadoso e confiante na palestra que nos deu.
- Ninguém é perfeito, minha filha. Ele confia demais em sua tecnologia, mas são as falhas humanas o que mais me preocupa. Um descuido, e seremos todos condenados.

- Eu vou conseguir, papai! - dizia Lyssa em voz alta para si mesma, enquanto corria pelos corredores da nave, evitando cruzar com mais de seus ex-companheiros. Todos infectados por não terem a mesma deficiência que ela. Todos enganados por ela, sem jamais suspeitarem de que era surda, e que havia aperfeiçoado sua dicção a tal ponto que não deixava o menor indício de que não era capaz de ouvir sua própria voz. E agora todos eram apenas mais algumas centenas de dedos de uma nova mão do invasor a surgir em meio à frota de duzentas naves enviadas para combatê-lo direto na fonte.

- Exibir localização atual. - falou para a armadura, que em seguida projetou no espaço uma miniatura tridimensional do mapa da nave. - Quase lá!

O abafamento e as dores musculares que já sentia não a incomodavam tanto quanto o sangue coagulado tingindo parte de seu rosto e da armadura. Sabia que não havia mais esperanças para aquelas pessoas, mas não é todo dia que você tem que matar dezenas de homens e mulheres que no dia anterior lhe davam "bom dia" e a tratavam não apenas como a filha do almirante, mas como uma amiga, como alguém com quem podiam contar nas horas de diversão e durante os combates. Não é todo dia que você é forçada a explodir a cabeça de seu pai depois de descobrir que ele se tornou parte do maior inimigo de sua espécie... Tudo isto por uma chance de fugir do próprio inferno.

- Se as coisas se descontrolarem, filha... Se nós também nos "convertermos," eu quero que deixe tudo isto pra trás, a qualquer custo. Não tente ir pra outra nave. Não tente ir para o espaço porto, nem para a Terra. Vá para Hytte. Quero que fique por lá.
- Mas, pai, eu não vou poder fazer nada por lá! Está fora da União!
- É justamente por isto! Você não pode sair de lá até que... Até que algo pare aquela coisa.
- Não há garantias, pai! E mesmo que Hytte esteja fora da União, algum dia ela pode se espalhar até lá.
- Se isto acontecer, filha... Você vai saber quando chegar lá.

Finalmente o hangar! Os módulos de fuga! E, claro, mais soldados do inimigo usando o corpo de seus companheiros... Contou quinze deles entre ela e o módulo de fuga 26. Aquele que estava programado para levá-la a Hytte. O único capaz de abrir um buraco de minhoca até ele. O único programado para ser acessível apenas ao DNA do General e de Lyssa.

- Fique com isto, Lyssa.
- O que é isto, pai?
- O controle direto do programa de autodestruição da nave.
- Por que está me dando ele? Isto tem que ficar apenas com o almirante.
- É uma cópia perfeita do que eu tenho. Quero que você esteja preparada pra destruir isto tudo aqui caso o pior aconteça. Será uma mão a menos que o inimigo terá pra continuar crescendo a nosso custo.
- Pai, você tem que ter fé de que as coisas vão melhorar.
- Lyssa, eu... Já aconteceu, minha filha.
- O quê?!
- O Dr. Schwartz... - seus olhos eram puro desespero - É como eu disse, filha. Ele confiou demais na tecnologia... Ele...
- ELE O QUÊ, PAI?!!
- Foi infectado. Matou a maior parte de sua equipe e conseguiu fugir. Estamos mantendo sigilo para que não gere pânico entre a maior parte da tripulação.
- Mas vocês estão tentando capturar o doutor, certo? Ainda dá tempo de impedir que ela se espalhe!
- Já se espalhou, Lyssa! Schwartz já foi morto. Mas o vírus já se espalhou pelo ar. Não tivemos tempo de vedar todas as seções da nave. É uma questão de tempo até que chegue aqui.
- Mas você ainda tem homens que não foram infectados! Eles podem defender as partes que ainda estão limpas.
- A maior parte de nossos soldados já está sob controle da criatura, Lyssa. Eles possuem armas capazes de destruir os obstáculos que nos separam deles. E quando a última porta ceder, filha... Quero que me mate antes de fazer qualquer mal a você, e fuja daqui.

- Tudo bem, sua coisa desgraçada! - gritou Lyssa para seus quinze adversários - Vamos ver se você consegue me segurar aqui!

Tiros certeiros em leque arremessaram os cinco primeiros para trás. As rajadas inimigas começaram logo depois. Lyssa desviou parte deles com o escudo. Um deles atingiu sua perna esquerda de raspão, mas não a impediu de seguir em frente. "É como usar um pincel, filha." E Lyssa pincelou metal e carne com sua katana, fatiando os adversários mais próximos sem esforço, e mantendo os outros à distância com rajadas de plasma até que estivesse pronta para atacá-los diretamente. Era uma deusa de mil olhos num avatar humano, enxergando tudo com seu corpo inteiro. Cada vibração e cada vislumbre era um ponto a ser analisado, evitado por um instante, e atacado mortalmente em outro. E num balé de sangue, desmembramentos e decapitações, Lyssa dançou com a morte uma vez mais, e livrou-se com muita destreza de cada um dos dedos que tentaram puxá-la na direção da submissão.

Quando terminou, estava encharcada de sangue. Ele não a incomodava mais. Era agora o combustível que alimentava sua determinação. Chegou até o módulo de fuga, cuspiu no sensor de leitura de DNA. "Sem tempo para tirar a luva, meu caro." A porta se abriu.

- Este módulo de fuga está programado para levá-la a Hytte. Deseja alterar seu destino? - perguntou prestativo o sistema de bordo.
- Sim. Leve-me direto para o centro de Dommedag 5-K.
- Devo adverti-la de que este é o planeta central de...
- EU SEI QUE É O MUNDO DAQUELA COISA MALDITA! É por isto mesmo que eu quero ir pra lá! Vou matar aquela vadia com minhas próprias mãos.
- Como desejar, Srta. Lyssa. Por favor, insira a senha de ativação da perfuratriz espacial.

Antes disto pegou o controle que seu pai lhe deu. "Descansem em paz." E apertou o botão. Em um minuto a nave se autodestruiria.

Em seguida inseriu a senha da perfuratriz, um buraco de minhoca se abriu no tecido do espaço, e o módulo de fuga se arremessou para dentro dele.

- Esta viagem tem duração prevista para cinco dias, treze horas, quatro minutos e vinte e sete segundos em tempo relativo.
- Que seja. É o suficiente para eu tirar um cochilo.
- Deseja que eu acione o campo de êxtase para que fique mais confortável?
- Não, obrigada. Vou dormir do jeito antigo mesmo (como o papai gostava...).
- Como preferir, Srta. Lyssa.
- Cinco dias, papai... Em cinco dias eu vou te deixar mais orgulhoso ainda. Sua princesinha vai matar o dragão.

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